"MENTES CRIATIVAS SÃO CONHECIDAS POR RESISTIREM A TODO TIPO DE MAUS TRATOS."
SIGMUND FREUD

domingo, 6 de dezembro de 2009

REPRESENTAÇOES SOCIAIS DA DOENÇA EM UMA UNIDADE DE SAÚDE NO MUNICÍPIO DE VOLTA REDONDA


INTRODUÇÃO
O ser humano, sua saúde, sua integração e plenitude constituem o objetivo de seu trabalho profissional, aos quais não deve renunciar em nenhum caso (Bleger, 1984, pag. 43), com essa frase de José Bleger, renomado professor universitário, falando dos objetivos do trabalho do psicólogo em comunidade ou instituições; iniciamos nosso trabalho, com o intuito de tentar compreender como os indivíduos efetivamente experiênciam a questão saúde/doença, e até que ponto são influenciados pelo grupo pessoas de onde trabalham. Muito tem se falado a respeito do conceito de saúde/doença e da sua influência sobre a vida dos indivíduos de maneira geral, a mídia, especialmente a televisiva, tem bombardeado seus espectadores com propagandas e campanhas sobre saúde. Mas será que estamos no caminho certo? Pergunto-me para que tipos de público essas campanhas são feitas, pois o seu efeito pode variar muito dependendo das pessoas que as vêem, pois cada uma delas tem seu próprio conceito do que é ter saúde ou, do que é estar doente. Existem diversas definições de saúde, uma das mais populares é a noção dicotômica, que trata saúde como mera ausência de doença, mas os profissionais de saúde e das ciências humanas adotam a definição da OMS (1947): “saúde é o estado mais completo de bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de enfermidade”, é por esse conceito que vamos pautar nosso trabalho.
Mais de vinte anos depois da divulgação da Carta de Ottawa, elaborada durante a Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada em Ottawa, Canadá, em novembro de 1986, percebemos diversas questões ainda pendentes de realização ou de concretização, como por exemplo, o trecho abaixo transcrito, que trata sobre a capacitação da comunidade, da qual os profissionais que trabalham na área da saúde fazem parte, para obter sua autonomia de ação mediante a doença:
“Alcançar a eqüidade em saúde é um dos focos da promoção da saúde. As ações de promoção da saúde objetivam reduzir as diferenças no estado de saúde da população e assegurar oportunidades e recursos igualitários para capacitar todas as pessoas a realizar completamente seu potencial de saúde. Isto inclui uma base sólida: ambientes favoráveis, acesso à informação, a experiências e habilidades na vida, bem como oportunidades que permitam fazer escolhas por uma vida mais sadia. As pessoas não podem realizar completamente seu potencial de saúde se não forem capazes de controlar os fatores determinantes de sua saúde, o que se aplica igualmente para homens e mulheres.” (Organização Pan-Americana da Saúde, 1986, pag. 01)
Mas como podemos falar em saúde e na promoção da mesma, quando os próprios agentes promotores de saúde, dentro desse conceito incluímos para fins desse estudo as pessoas que são pagas, para efetivamente promover ações de saúde, ou seja, os profissionais dessa área, seja qual for o setor em trabalhem, por exemplo: uma pessoa que trabalhe na limpeza e higienização de uma unidade de saúde faz parte deste conceito acima referenciado, bem como as pessoas que trabalham na cozinha, enfermagem, lavanderia portaria, direção e diversas outras atividades axercidas neste local, muitas vezes não se encontram plenamente capacitados para perceber com qual tipo de pessoa está trabalhando neste ou naquele atendimento, abordando a todos da mesma maneira. E isso pode ir além desse contexto, e esse é o principal motivo dessa proposta de intervenção, esses agentes de saúde algumas vezes nem sequer podem identificar suas próprias questões, fazendo com que alguns trabalhem doentes ou aparentemente saudáveis, trazendo assim prejuízos ao andamento do serviço e conseqüências físicas e psíquicas profundas nestes indivíduos. Até que ponto as instituições de saúde tem preparado ou auxiliado seus funcionários/agentes para que possam se sentir bem e assim ajudarem na promoção da saúde dentro da comunidade que convivem? Será que eles estão conseguindo por em prática todo seu potencial de saúde? Será que possuem ambientes favoráveis no seu lugar de trabalho, por exemplo, para o desenvolvimento da sua saúde? Ou ainda, até que ponto a instituição é responsável pela capacitação dos mesmos? Como a instituição pode ajudar seus membros sobre essas questões? Eles têm a possibilidade de controlar os fatores determinantes de sua saúde, dentro do seu ambiente de trabalho?
Estas são algumas das questões que procuraremos investigar e esclarecer, bem como propor ações que venham de encontro com as principais debilidades identificadas visando assim tentar proporcionar condições melhores de trabalho, ajudando com isso ao agentes/funcionários, desenvolver sua própria saúde e ser um multiplicador em sua comunidade ou grupo que faça parte.
INÍCIO DA PESQUISA
Ao conversar com minha mãe que é funcionária da principal Unidade de Saúde (US) do SUS (Sistema Único de Saúde) no município de Volta Redonda, observei que nessa unidade de saúde ainda se continua privilegiando, uma concepção fragmentada de saúde, esquecendo-se a relevância dos aspectos sociais e psicológicos como mediadores dos processos saúde-doença, e como essa concepção parece interferir nas relações institucionais (entre os próprios funcionários, com a instituição direta e indiretamente e até mesmo com a comunidade atendida por esta entidade de saúde). Tal observação se deu ao ouvir dela diversos relatos particulares e fatos acontecidos com terceiros (colegas de trabalho), sobre como ela e outros funcionários, lidavam com os limites do seu organismo. Ela contou-me que muitas pessoas trabalham com dor, febre e até partes do corpo seriamente comprometidas (fraturadas, por exemplo), essas observações me deixaram um tanto quanto preocupado e ao mesmo tempo motivou-me a tentar entender o que acontecia naquele lugar e/ou com aquelas pessoas, que as levavam a agirem de maneira tão displicente com o próprio corpo.
Para abordar esse tema de maneira mais objetiva gostaríamos primeiramente de destacar a importante influência da cultura na elaboração dos conceitos que cerceiam nosso cotidiano e no caso do nosso trabalho o de saúde/doença, que invariavelmente está permeado subjetivamente em cada indivíduo. A antropologia define cultura da seguinte maneira: sistema simbólico; formas de pensar que conformam uma visão de mundo; valores e motivações conscientes e inconscientes; uma lente através da qual as pessoas interpretam e dão sentido ao seu mundo (Geertz, 1978). Dentro dessa afirmação, partimos do pressuposto que todas as pessoas que trabalham neta unidade de saúde estão inseridas dentro da cultura que ali existe, ou seja, elas contribuem para construção conceitos dentro deste sistema simbólico, bem como são por ele fortemente influenciados, até mesmo quando vão de encontro a ele. O professor Jorge Iriart, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, no seu trabalho publicado em 2003, ressaltou a importância da desconstrução dos conceitos disseminados a respeito do assunto, fato esse que leva as pessoas a algumas atitudes e reações que podem atrapalhar o desenvolvimento de sua saúde, como por exemplo, o próprio excesso de preocupação com a saúde ou o total descaso para com ela, tudo isso aponta para prováveis anomalias no modo de ver a questão ou de enfrentá-la da melhor maneira possível.
RESULTADOS DO TRABALHO DE CAMPO
Para ilustrar melhor a influência dessa cultura nas ações de cada indivíduo, e exemplificarmos como cada um representa de modo diferente as enfermidades, faremos uma breve narração de fatos ocorridos com uma funcionária da referida unidade de saúde, coletados durante entrevista que fizemos com a mesma em sua residência. Mulher, 63 anos de idade, mãe de duas filhas, avó de duas crianças, trabalha desde jovem, pois perdeu seus pais muito cedo, as filhas moram com ela, uma separada recentemente outra mãe solteira de dois filhos. Ela trabalha a 11 anos no hospital, onde segundo ela é amiga de todos. Mas o que mais chamou a atenção no relato desta senhora, foi acidente que ela sofreu dentro da cozinha do hospital, ela possui uma prótese de patela na perna esquerda, no dia do acidente ela escorregou em uma casca de batata e bateu com seu joelho no chão, sentido após a queda uma dor muito forte, foi então que ela passou a suspeitar que havia quebrado a prótese na queda. Mas mesmo sentindo imensa dor ela continuou a trabalhar, e trabalhou com essa dor por mais de dez dias. E só procurou o médico quando estava totalmente impossibilitada de trabalhar, tamanha era a dor que sentia.
O que pretendemos com esse relato é demonstrar como as representações de saúde e doença são totalmente diferentes uns dos outros, mas que podem ser influenciadas pelo seu ciclo relacional, tanto de maneira positiva quanto negativa, pois no caso acima descrito, para não deixar que os amigos precisassem fazer o seu trabalho, ela preferiu ficar calada do que comunicar o acontecido a seus superiores, e registrar o acidente de trabalho, mas foi também pela insistência de outros que ela procurou um médico.
Deve-se levar em consideração o fato que ela foi ao médico da instituição, que por acaso é o mesmo que a operou, e que ele disse que nada de errado havia com a mesma e que poderia voltar ao trabalho normalmente, sem pedir sequer um simples exame. Segundo a entrevistada somente os médicos da instituição podem conceder licenças para tratamento de saúde, mas que dificilmente concedem alguma, ela não sabe dizer o motivo. Será que ele agiu dessa forma por imposição daquela instituição, ou será que sua representação do conceito de saúde/doença também está comprometida? São perguntas que ficarão sem respostas diretas, pois a US não autorizou a nossa entrada para entrevistar seus funcionários, observarmos o ambiente e as interações sociais das pessoas que trabalham ali. As entrevistas encontradas neste projeto foram feitas porque conhecemos os entrevistados, todas foram feitas fora do hospital, na sua maioria na residência dos entrevistados.
Outro caso é de uma funcionária de 53 anos de idade, que trabalha nesta US há 15 anos, possui bursite crônica, sérios problemas de coluna (hérnia de disco na região lombar), artrose degenerativa (comprovada por exames) e tendinite no braço direito, a mesma relata que há vários anos vem sentindo dores, inclusive já diagnosticas pela medicina as suas causas e que inclusive já foi recomendado pelos médicos uma cirurgia para tentar amenizar os problemas da coluna. A mesma informou ainda em entrevista que nunca fez um tratamento adequado para nem uma dessas doenças, quando a dor se torna insuportável, ela procura o médico da US, que lhe passa um remédio analgésico, lhe dá alguns dias de dispensa, que não pode exceder a três dias e mais nada.
Há duas questões que nos chamaram a atenção e que gostaríamos de refletir sobre elas, a primeira questão é sobre qual é o “lugar” desse médico dentro da instituição? Não seria ele um profissional de saúde que tem como missão principal ajudar as pessoas a cuidar do seu bem estar físico? Ou seria ele um agente da instituição com a incumbência de inibir as solicitações de licenças ou até mesmo ignorá-las? Ou ainda, pelo fato de trabalhar comas pessoas que atende, há por parte dele certa resistência em conceder essas dispensas medicas, por julgar as pessoas pela sua percepção pessoal delas? A nosso ver, ao não indicar nem um tipo de tratamento a essa pessoa que se queixa de dores crônicas que vêm se arrastando ao longo de anos, o profissional aparentemente comete uma falha ou no mínimo um equívoco. O segundo ponto que é importante salientar aqui é o motivo pelo qual essas pessoas relutam tanto em se licenciar para tratar de sua saúde. Essa questão nos chamou a atenção logo assim que foi levantada, pois ao questionarmos isso às entrevistadas, descobrimos que existe uma gratificação paga trimestralmente, chamada de incentivo, para os funcionários que não tenham tirado licenças médicas superiores a quinze dias mensais dentro do período, ou seja, se você tiver uma doença em que precise de vinte dias de licença para tratamento, automaticamente você perde a gratificação, que pode variar de valor de acordo com a faixa salarial do funcionário, para muitos é uma quantia significativa da qual ele não gosta ou não pode abrir mão, talvez por isso ele continue postergando seu tratamento até não poder mais suportar as dores.

CONCLUSÃO
Respondendo as questões levantadas no início do nosso trabalho, e algumas outras que surgiram no decorrer do mesmo, percebemos que essa US, pouco tem feito pela autonomia dos seus funcionários, quando falamos em autonomia, nos referimos ao empoderamento desses funcionários sobre sua capacidade de auto regulação, no sentido de que ele possa ser capaz de identificar suas limitações físicas e/ou psíquicas, ao aparato que é necessário por parte dela para que seu funcionário possa tratar de sua doença, aparato que se estende desde da boa receptividade e imparcialidade por parte de outros funcionários, neste caso especificamente os da área médica, até a tranqüilidade e motivação por parte da administração, para que o funcionário/agente de saúde, possa fazer seu tratamento sem precisar ficar pensando por exemplo no seu orçamento que será prejudicado.
Gomes, Mendonça & Pontes, no artigo intitulado As representações sociais e a experiência da doença, publicado em 2002, dão a doença o sentido que procuramos abordar em nossa intervenção, quando dizem: Aqui empregamos doença ou enfermidade como reflexo da combinação de aspectos da experiência dos indivíduos e situações sócio-culturais. Isso, por sua vez, não significa que desconsideremos os aspectos biológicos presentes no processo do adoecer. Assim, junto a esses aspectos, buscamos desenvolver uma perspectiva interdisciplinar na abordagem da enfermidade (pag. 1212). Afirmam ainda que esse modelo é a que proporcionaria uma dialética entre os envolvidos que, segundo eles, ficariam jogando com seus saberes, nossa questão principal seria como a psicologia pode ajudar a quebrar ou ao menos amenizar esse paradigma, onde as representações sociais da doença estão sobrepostas sobre as experiências individuais, e as ações dos indivíduos envolvidos, passam por aspectos culturais e são tão fortemente influenciados pelo grupo a ponte de, em certos momentos, deixá-la em segundo plano.
A nosso ver, o primeiro passo desse processo é proporcionar a todos os membros dessa unidade de saúde a oportunidade real de expressarem suas subjetividades, criarem um laço, para que vejam no outro um ser que tem seus pontos de vista, suas opiniões, que tem uma experiência que pode, e provavelmente é diferente das suas, levando essas pessoas a um verdadeiro encontro com o outro, ou como se diria na Gestalt, um encontro eu-tu. Gomes, Mendonça & Pontes, confirmam essa observação no trecho de seu artigo, onde dizem: Assim, na medida em que se consegue ir para além das falas e das ações em geral, a articulação entre o representado e o vivido do ser doente pode ser conseguida e servir de base para políticas e ações que contemplem os sujeitos para os quais se estas destinam (pág. 1213).
O psicólogo neste sentido deve ser um articulador das relações, que vai procurar no diálogo construir ou desconstruir significados e ajudar a buscar a melhor maneira de responder as demandas de cada um. Ocampo (2006), assim descreve o psicólogo que atua junto às unidades de saúde: Esse profissional trabalha as relações de forma a promover a autodeterminação das pessoas, buscando desenvolver uma atitude de esperança na própria capacidade de resolver as situações que elas enfrentam cotidianamente (pág. 15). Bleger (1984) estabelece duas tarefas essenciais no âmbito da atuação psicológica dentro de instituições, em primeiro lugar ele afirma que a instituição deve ser investigada e tratada, o segundo nível seria o da atuação sobre grupos humanos, ele afirma que o profissional de psicologia deve atuar sobre a problemática, as tarefas e as situações de tensão coletiva, utilizando-se dos meios de comunicação ao seu dispor e toda gama de organismos e instituições já existentes dentro daquele sistema.
Em suma podemos dizer que nossa tarefa dentro do tema proposto para a intervenção é o de proporcionar uma melhor comunicação entre os agentes de saúde, incluindo as pessoas responsáveis pela administração, desconstruir pré-conceitos entres os subgrupos que se formaram dentro daquela unidade de saúde (grupo dos médicos, grupo das cozinheiras), oferecer as informações possíveis e necessárias para que o indivíduo possa construir seus próprios conceitos e que, a partir dessas construções, suas representações possam encontrar um equilíbrio e eles possam falar em nome próprio. Sabemos da dificuldade de implantação e até mesmo de aceitação dessa intervenção no âmbito institucional, prova maior foi a indiferença da referida unidade de saúde para este pesquisador, que não se deu ao menos o trabalho de responder a solicitação feita por nós, a fim de obtermos uma autorização para que pudéssemos entrevistar seus funcionários, mas segundo Bleger (1984) isto também faz parte do processo, notamos explicitamente isso quando ele nos fala sobre os objetivos da instituição e os objetivos do psicólogo:
Um serviço hospitalar solicita o assessoramento de um psicólogo, mas entorpece total e permanentemente sua atividade; o exame da situação descobre o fato de que o interesse da instituição reside basicamente em ostentar uma organização progressiva e científica frente a outros serviços hospitalares competidores, mas a atividade do psicólogo é, na realidade, temida. Estes fatos não invalidam, não impossibilitam a função do psicólogo, e sim que já são as circunstancias sobre as quais justamente se tem que agir (pag. 42).
Por isso é importantíssimo a participação e a contribuição de todos, a abertura de canais de comunicação direta entre o os membros da organização, a implementação de ambientes voltados para discussões da temática é primordial, a capacitação dos profissionais é peça chave dessa relação empoderadora, que citamos anteriormente, capacitação no sentido de que eles aprenda a ter uma visão global das relações pessosas-contexto, seja psicólogo, médico, assistente social, cozinheira para que deixem de predominar preconceitos comuns em relação a eles.
Enfim, é necessário reaprendermos nossas relações de maneira a torná-las o mais igualitárias quanto possível e proporcionar, acima de tudo, a aprendizagem e o autoconhecimento em busca do equilíbrio individual, e isso conseqüentemente refletiram de maneira coletiva e o psicólogo deve agir como facilitador dessa tarefa, para encerrarmos queremos deixar aqui a frase de Bleger (1984) que sintetiza todo nosso pensamento:
O mais importante que ocorre é que não somente podem se esclarecer e corrigir problemas e situações, mas sim que gradualmente tem lugar uma meta-aprendizagem quem consiste em que os implicados na tarefa aprendam a observar e refletir sobre os acontecimentos e a encontrar seu sentido, seus efeitos e integrações (pág. 47).

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