"MENTES CRIATIVAS SÃO CONHECIDAS POR RESISTIREM A TODO TIPO DE MAUS TRATOS."
SIGMUND FREUD

segunda-feira, 2 de abril de 2012

O absurdo do pedido de confisco do Dicionário Houaiss pelo MPF

Aurélio Paiva

Antônio Houaiss morreu em 1999 aos 83 anos. Melhor assim. Se estivesse vivo hoje, com 96 anos, é possível que estivesse sendo processado por racismo pelo Ministério Público Federal de Uberlândia. Vejam abaixo a reprodução da parte inicial da reportagem publicada no portal Terra na segunda-feira:
"O Ministério Público Federal (MPF) em Uberlândia (MG) entrou com uma ação contra a Editora Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss para a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda e distribuição das edições do Dicionário Houaiss, que contêm expressões pejorativas e preconceituosas relativas aos ciganos. Segundo o MPF, também deverão ser recolhidos todos os exemplares disponíveis em estoque que estejam na mesma situação".
A reportagem prossegue:
- O objetivo da ação é obrigá-los a suprimir do dicionário quaisquer referências preconceituosas contra uma minoria étnica, que, no Brasil, possui hoje mais de 600 mil pessoas. Para o MPF, os significados atribuídos pelo Dicionário Houaiss à palavra "cigano" estão carregados de preconceito, o que, inclusive, pode vir a caracterizar crime. "Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura 'cigano' significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, ou, ainda, que se trata de acepções carregadas de preconceito ou xenofobia, fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação", diz o procurador Cléber Eustáquio Neves.
A função do dicionário
O procurador Cléber Eustáquio Neves demonstra uma ignorância colossal sobre a função de um dicionário. O objetivo é registrar os significados de cada palavra, incluindo os significados adquiridos do seu uso comum pelo povo. Registrar, inclusive, os significados negativos, deixando claro, nestes casos, o conceito pejorativo, como bem o faz o Dicionário Houaiss.
Tomando como exemplo o verbete "mulher" no próprio Houaiss vê-se que, além de caracterização principal como "ser humano do sexo feminino", registra variantes pejorativas como "mulher à toa" e "mulher de rua", assim como une seguidamente "esposa, amásia, concubina".





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Apreensão aconteceu porque editora não quis mudar conteúdo de um verbete
O dicionário na mira do MPF: Apreensão aconteceu porque editora não quis mudar conteúdo de um verbete
Obrigar o dicionarista a tirar tais expressões, porque estariam a incentivar o preconceito, é imaginar que dicionário faz juízo de valor. Não o faz. Dicionário, repita-se, apenas registra e o nome disso é Ciência. E censurar a Ciência nos remete à Idade das Trevas.
Nenhum dicionário permanecerá nas estantes de livros deste país se a saga iniciada pelo MPF de Minas Gerais prosperar. Em todos há incontáveis verbetes que registram tons pejorativos a determinados segmentos sociais. Não aprovam tais significados, registram e, de certa forma, até o reprovam ao indicar sua pejoratividade. Mas, pela tese do MPF mineiro deverão ser devidamente recolhidos das livrarias.
Há uma alternativa - proposta pelo próprio MPF - que seria as editoras suprimirem as partes dos verbetes consideradas negativas por aquele órgão federal. Viveríamos, assim, a realidade do livro "1984", de George Orwell, em que o Estado cria a "novilíngua", alterando os conceitos do idioma e dando às palavras os significados que sejam de agrado das autoridades.
A queima de livros
Vivemos uma era de absurdos no país. Não creio que haja precedente histórico de um órgão federal pedir à Justiça que mande recolher dicionários em livrarias por qualquer razão que fosse. Quanto mais por discordar do conceito de um verbete.
Esta história de perseguir livros começou antes mesmo da invenção da imprensa no Ocidente. Começou há mais de 200 anos antes de Cristo, quando o primeiro imperador chinês, Qin Shi Huang, mandou queimar toda a literatura existente, com exceção dos livros de medicina, adivinhação e agricultura. Depois, para garantir que novos livros não seriam escritos, ordenou que enterrassem vivos cerca de 400 pensadores confuncionistas.




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Primeiro imperador chinês fez o primeiro confisco de livros registrado na História
Qin shi huang: Primeiro imperador chinês fez o primeiro confisco de livros registrado na História

O caso chinês foi se repetindo pela História através do incêndio da Biblioteca da Alexandria, o Index da Santa Inquisição e a queima de livros em praça pública pelos nazistas. Em maior ou menor grau, ditaduras de esquerda e de direita exerceram sua perseguição aos livros, seus escritores e às editoras que os publicam.
A questão é que vivemos hoje, no Brasil, um regime formalmente democrático. É o que faz com que tal iniciativa do membro do MPF torne-se particularmente assustadora. E vai de assustadora a horripilante se verificarmos que o ato do procurador em questão está em sintonia com o que pensam e com a forma como agem inúmeras autoridades e formadores de opinião no país.
O (triste) papel das instituições
Vivemos uma era de estrelato para massas. Operações da polícia e do Ministério Público inúmeras vezes se destacam não pela qualidade das investigações, mas pelo número de presos (junta-se aos verdadeiros suspeitos alguns pobres coitados não tão suspeitos que passarão um tempo na cadeia até terem a inocência declarada). Dá-se um nome pomposo à operação e bem-vindo ao teatro. Quando há pessoa ou instituição famosa supostamente envolvida, o estrelato é redobrado.
Neste contexto, a imprensa falha em seu papel ao abandonar a visão crítica na maioria dos casos. Com o advento da Internet a pressa pelo "furo" jornalístico substituiu a investigação jornalística. A palavra de uma autoridade é levada ao leitor, na maioria das vezes, como verdade absoluta. Caso mais tarde o cidadão prove sua inocência nos tribunais, ganha uma nota de rodapé ou dez segundos na TV em contraponto às manchetes que antes o expuseram à opinião pública.
Os blogs, que se imaginava fossem contribuir para melhorar a apuração e o equilíbrio das informações, terminaram em grande parte transformados em sítios de calúnias e linchamentos. Jornalistas que criaram seus próprios blogs não levaram a eles a ética da profissão: desceram ao abismo moral de usá-los para achincalhar desafetos políticos e pessoais e defender interesses de grupos específicos. Pateticamente, alguns destes profissionais passaram a fazer campanha aberta pela própria censura à Imprensa.
Dando sua contribuição, boa parte do Judiciário se amesquinha, respaldando decisões, até mesmo na sua Corte Maior, que atentam contra os direitos civis e individuais em nome da catarse coletiva e de uma suposta "justiça das ruas".
Quanto ao governo federal, a presidente da República busca (até agora, felizmente, com sucesso) evitar que os radicais do seu partido levem adiante o plano de transformar nossa recente democracia em um regime chavista bolivariano ou no modelo argentino de Cristina Kirchner.
A paranóia no poder
Some este conjunto de vaidades, insegurança jurídica e linchamentos morais e ponha uma boa pitada de politicamente correto. Pronto: vai ter gente vendo desde golpe de estado em uma denúncia na Imprensa até racismo em dicionário. Agora, acrescente o poder de uma autoridade qualquer que se julgue messiânica, redentora do que quer que seja. Aí o perigo é real.
Esta relação esquizofrênica do poder, que mistura paranóia com messianismo, foi bem definida por Elias Canetti (Prêmio Nobel de Literatura de 1984), em sua obra Massa e Poder, onde ele busca chegar à essência do totalitarismo. Diz ele:
- A ambição do poder é o núcleo de tudo. A paranóia é, no sentido literal da palavra, uma enfermidade do poder.
Sobre este texto de Canetti, a socióloga Maria Lúcia Victor Barbosa destaca na paranóia do poder "a mania de grandeza e perseguição, o constante cuidado de assegurar uma posição exaltada, a idéia de se sentirem cercados por conspirações, a sensação de serem os redentores do mundo, a ambição como núcleo do poder".
O caráter contagioso desta enfermidade no momento histórico do país é a preocupação maior. Vivemos uma democracia, mas estamos criando pequenos ditadores em cada estrutura de poder.
Canetti presenciou a época da queima de livros pelos nazistas na Áustria. Como judeu, teve que fugir dos nazistas da Alemanha, indo para Londres. Foi este turbulento período que o inspirou a escrever Massa e Poder. Como também certamente o inspirou a produzir Auto-de-Fé, que lhe valeu o Nobel de Literatura.
Neste romance de Canetti o personagem principal, Peter Klein, tem uma característica em comum com o nosso Antônio Houaiss: é filólogo. Klein tinha uma enorme biblioteca pessoal em sua casa, além de uma das principais livrarias da sua cidade. Canetti utiliza os personagens do romance como parábola da paranóia que narra em Massa e Poder.
Bom, o final da história é que os livros são queimados.
Mas a lição que nos serve, no momento, é que o totalitarismo sempre começa perseguindo esta figura histórica, subversiva e revolucionadora de idéias chamada... livro.
Daí o horror de um país começar a confiscar seus dicionários e ter autoridades com o poder de cassar verbetes e impor o significado das palavras ao seu povo.





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Prêmio Nobel dissecou a paranóia como doença do poder
Elias Canetti: Prêmio Nobel dissecou a paranóia como doença do poder


FONTE: JORNAL DIÁRIO DOVALE, 29/02/12

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